terça-feira, 17 de março de 2009

Alvess: Artista secreto de singular, natural de Viseu


O Museu de Serralves – Museu de Arte Contemporânea apresentou a primeira exposição antológica de Alvess (Manuel Nogueira Alves, n. 1939, Viseu), comissariada por João Fernandes e por Sandra Guimarães. A mostra reúniu obras que abrangem um leque temporal de cerca de quarenta anos e, atendendo ao facto de muitas delas nunca terem sido trazidas a público – talvez por isso os comissários apelidam Alvess de “um dos mais secretos artistas portugueses” –, a exposição revestiu-se de um contributo de monta ao nível da construção, por vezes não muito fácil, da história da arte portuguesa dos últimos cinquenta anos. Vamos tentar perceber porquê.
O percurso artístico de Manuel Alvess conheceu alguns momentos relevantes, tais como a frequência de um curso promovido pela Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. Na verdade, esta instituição assumiu uma importância assinalável na formação artística de várias gerações, particularmente a partir dos anos de 1964/1965, quando, estando Fernando Pernes na direcção, o ensino era reformulado e instituía-se o Curso de Formação Artística, na época programado por José-Augusto França. Em 1963 Alvess parte para Paris, obtendo uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian.

Estas bolsas, atribuídas a partir de 1957, abriram a auspiciada possibilidade de estudo no estrangeiro a muitos artistas portugueses, desencantados com a ditadura mas felizmente ainda encantados com o mundo. Além do clássico exemplo de Helena Vieira da Silva – naturalizada francesa em 1956 –, seguem, posteriormente, para o estrangeiro Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, António Dacosta, António Sena, Bartolomeu Cid, Costa Pinheiro, Eduardo Batarda, Fernando Lemos, Graça Pereira Coutinho, João Cutileiro, João Vieira, Jorge Martins, Jorge Pinheiro, José Barrias, Júlio Pomar, Lourdes Castro, Paula Rego, René Bertholo, entre outros, emigrados em São Paulo, Roma, Londres, Munique ou, na sua maioria, Paris. Alguns nunca mais voltariam a residir em Portugal; outros regressariam por curtos períodos.
A Revolução de Abril (1974) abriu a fundamental liberdade de criação, mas tudo estava ainda por fazer: ensino artístico apropriado, verdadeiros museus de arte moderna/contemporânea – pensemos na manifestação de 10 de Junho de 1974, “Enterro do Museu Nacional de Soares dos Reis” que, felizmente, culminaria na constituição do Centro de Arte Contemporânea (1976-1980), que funcionou nas instalações do referido museu, sob direcção de Fernando Pernes –, dinamização do mercado da arte, políticas culturais coerentes e profícuas. Alvess, após ter-se apresentado na “Bienal de Paris” (1969) ou no “Salon de Mai” (1971) – iniciativas performáticas documentadas na presente exposição –, participaria em eventos artísticos em Portugal, que se inserem numa conduta experimental, de pesquisa, que seria determinante para o incremento das artes plásticas “de vanguarda”, se quisermos.
Estes eventos, como “Perspectiva 74” (Porto, 1974, organizado por Egídio Álvaro na Galeria Alvarez Dois, na época dirigida por Jaime Isidoro), “IV Encontros Internacionais de Arte” (Caldas da Rainha, 1977, dirigidos por Egídio Álvaro), ou “Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea” (Lisboa, 1977, sob responsabilidade crítica de Ernesto de Sousa) – justamente onde Alvess leva obras de mail art, género igualmente apresentado nesta mostra antológica – constituem-se como momentos-chave para a compreensão da arte portuguesa da década de setenta, que se incrementa, em larga medida, a partir dos desenvolvimentos da pop art e da arte conceptual, numa certa revisitação do dadaísmo e na crença de que “a arte é a vida”.
Compreendemos, pois, a chamada de atenção dos comissários para as referências do movimento Fluxus – nome inventado por George Maciunas em 1961 para apelidar a reunião de dança, artes visuais, teatro, poesia, música, etc. – no trabalho do artista. Para além dos núcleos documentais e de mail art, encontramos em Serralves núcleos de pintura/”objectos-pintura” – representações hiper-realistas de objectos simples –, de objectos/objectos, e de desenhos, marcando as várias fases do trabalho do artista, cujo fio condutor poderá localizar-se numa pesquisa da mediação da realidade, e na arrumação visual, contida e depurada, de uma realidade inquietante e de um tempo que não se agarra.
Pensemos nos algarismos, nas letras, nos riscos aparentemente arbitrários mas que se organizam visualmente no espaço, nas etiquetas, nas fitas métricas, nas repetições sincopadas, ou numa das peças mais interessantes da exposição: a vassoura que “limpa Paris”, uma espécie de instrumento musical com mala cuidadosamente feita à medida. Esta exposição revela Alvess e, consequentemente, revela também a história recente da arte portuguesa.


texto de Isabel Nogueira in Arte Capital




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